domingo, 31 de julho de 2011

Vermelho

Vermelho. O sol ardia no horizonte. Queimava o solo rachado, a árvore seca e a pele áspera de João. E na secura do sertão, uma lágrima rolava úmida pelo rosto do vaqueiro. 'Ave Maria, há de ser um lugar meió'. Face serena, alma calejada.E queimada. 'Importa não ir embora, aqui já nem urubu pousa mais'. Mas e Maria? 'Maria'. A moça de corpo moreno, não do sol, mas de nascença, fazia sua alegria. Lembrava de sua conquista. Maria tinha sido a única vitória de sua vida. Momento único, em que foi homem e não rato. 'Por que, meu Deus?'. A pergunta vinha enquanto mirava o céu ruivo. Deixar tudo para trás. No bolso da calça, a fé. A esperança não cabia ali. 'Como pode Deus, nosso senhor, deixar a vida se acabar assim? Seca, sem vida, sem sombra'. Ah, a sombra de um cajueiro lhe faria bem. Sentar-se debaixo de uma frondosa árvore, comer seu fruto e sorver sua água. Talvez assim amenizasse a febre que lhe queimava o corpo. Ou teria o sol se rebelado contra o sertanejo? O corpo ressecado e ressentido se curvava. O solo lhe puxava, como que pedindo um colo, um afago fraterno, a união de dois irmãos de luta. De joelhos, João rogava a Nossa Senhora que o levasse para um lugar bão. E pensava 'Jesusinho não ia me deixar assim'. O sol ardeu mais do que nunca. E depois parou. Um fio de vida escorreu úmido, límpido, impiedoso pela pele rachada do vaqueiro. E então, secou.

domingo, 22 de maio de 2011

Crônica do tédio exponenciado

(No ônibus, a caminho de casa, parada na entrada da Anchieta há mais de uma hora).

Vejo uma dessas senhoras de idade avançada sentada na poltrona ao lado. É uma dessas mulheres que, embora a gravidade e o tempo sejam impiedosos, acreditam ser eternamente jovens. Não pretendo discutir a questão da mocidade, pois, como dizia algum velhinho do qual não me lembro o nome, cada um tem a idade de seus preconceitos. Apesar do vestido florido e curto, das unhas pintadas de vermelho vivo e da tintura rubra nos cabelos quase perfeitamente alisados, a idade da mulher não se esconde atrás do seu discurso. Ao contrário, enquanto fala, ela - a idade da mulher - desfila e se exibe sem pudor aos nossos olhos... “Ah, os brasileiros”, suspira a velha, digo, senhora do ônibus. Nota mental: é sempre preciso manter a aparência do politicamente correto. Parada há mais de uma hora na entrada da Anchieta, a senhora brada e clama a revolução contra o inimigo por hora oculto. Alguém diz “foi acidente no quilômetro 48” e a velha, digo, senhora aumenta o volume. “Temos que descer todos do ônibus! Vamos pedir ao motorista que resolva a situação! É por isso que o Brasil não vai pra frente! Brasileiro não faz nada!”, nos ensina a tupiniquim que está sentada. Ah, essa juventude me comove...

sábado, 2 de abril de 2011

Uma vodca

- Uma vodca, por favor. Não, não. Duas vodcas, por favor! Eu já estava ali há meia hora encarando o cardápio. E tudo que consegui pedir foi a alforria que uma vodca, perdão, duas vodcas iam me proporcionar. Enquanto o garçom trazia os copos de alívio, tudo que eu me perguntava era: por quê? Primeiro copo, primeiro gole. Tem gente que vem pra ficar. Que não passa aleatoriamente pela vida, de quem se vai sentir falta. O segundo gole escorria pela garganta rasgando. Rasgando igual à dor. Você se dirigiu a mim quantas vezes? Uma, duas. No máximo, três. Nossa maior conversa durou o que? Umas três trocas de frases, cinco minutos de vida. Vida. Impressionante como ainda agora, mesmo sob o efeito do álcool, me lembro do que você dizia. Aquelas três frases que fizeram a diferença. Segundo copo, primeiro gole. Começo a rabiscar no guardanapo coisas sem sentido. Tem gente que vem tão forte, que tem tanta presença, que, mesmo partindo, permanece. E não se trata de permanência em nossa mente ou coração. Falo de presença física mesmo. Sabe quando a pessoa, embora não esteja mais ali, ainda faz parte da cena, do contexto? Aquele tipo que parece eterno? Que não se espera que chegue o fim... Me levanto da mesa e pago a conta. Volto pra beber o último gole com a sede de quem sofre, mas continua vivendo. E, escrito no guardanapo, leio: Sentirei sua falta... *Em memória de Francisco Solano Lopes e Pedro Villaverde